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quarta-feira, 6 de outubro de 2010

A tampa e os vinte anos

Quando a tampa da garrafa de cerveja foi parar bem no buraquinho do meio da mesa, uma série de fotos me veio à cabeça justamente dos mesmos momentos. Letícia, a caçula das cinco, conseguia a proeza de sempre fazer a mesma coisa quando juntava o abridor com a tampinha. Várias pessoas que conheci depois também o faziam, claro, mas com ela era mais engraçado porque acompanhei o aperfeiçoamento de sua técnica. Aposto que, lá no laboratório de química onde trabalha, só não fica mirando tampinhas nos frascos porque corre o risco de algumas daquelas soluções explodir ou sei lá.

O sol estava de bom humor e todo irradiante naquele céu que de tão azul parecia sorrir. Era um daqueles dias que, se fosse possível, a gente colocaria numa mala pra despejar numa segunda-feira chuvosa. A cerveja estava estupidamente gelada e casava perfeitamente com o fim da sexta-feira. Para fechar a cena, o bom e velho bar de sempre em frente ao clube, com as mesas tomando conta da calçada e a dona sorridente atrás do balcão, que desde que me conheço por ser pensante aparenta ter 60 e por aí vai.

"Se ela acertar cinquenta e quatro vezes essa maldita tampa no maldito buraco, vocês vão continuar achando a coisa mais magnífica da face da terra e eu vou continuar sem encontrar a graça que vocês vêem, e olha que presencio a mesma cena há bem mais tempo".

Se a Patrícia pudesse, implicaria com a irmã 27 horas por dia por cento e seis motivos diferentes tirados não sei de onde. Acredito que até hoje ela deva parar no meio de alguma análise que esteja fazendo só pra ligar pra irmã e, no meio da conversa descompromissada, implicar com alguma coisa só para deixar o dia completo. Elas sim levaram à risca o quinto mandamento dos irmãos que diz: "Não perderás uma oportunidade sequer de chatear aquele que veio do mesmo útero que você".

"Pati, vai lá analisar seus exames, vai. Lê, como você aguenta? Aposto que a Marília pode tentar mil vezes e não consegue fazer isso. Fran, tá na sua vez de pegar a cerveja."

Giovana, ariana, geniosa, mandona e com o coração mais aconchegante que nuvem . A que diz não e nunca mais, mas é a primeira a se prontificar, ajudar, apoiar e dar de cara no muro. Paradoxo e discrição são palavras que lhe caem bem. Também viemos do mesmo útero e essa talvez seja nossa única semelhança. Seu bolo de chocolate foi uma das coisas que mais fez - e ainda faz - falta desde que moro sozinha.

"HAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHA"

Marília se resumia em risos, sorrisos e olhos exalando alegria de viver, mesmo guardando uma melancolia no fundo. Chorava com facilidade, de tanto rir, de coração mole por natureza, de tristeza passageira, de ferida que não cicatriza. Era nutricionista e conquistava os pacientes tornando toda dieta sem sabor numa coisa divertida. Acreditava no mundo e sempre encontrava seu amor-pra-sempre.

Estiquei a perna e peguei a tal da tampa amarela. Parecia aquela mesma de quando tínhamos dezessete anos, que estava presente quando sentávamos no mesmo bar, com as mesmas pessoas e nos desligávamos do mundo. Os planos do fim de semana deram lugar ao compromisso inadiável com o diretor da empresa, a festinha do colega de escola ou a aula que precisa ser preparada e as provas esperando para serem corrigidas. Mas ali eram só cinco amigas no boteco discutindo sobre melhores técnicas para se lidar com a tampa da garrafa. Não nos víamos há vinte anos, e muitos aperfeiçoamentos precisavam ser testados e comprovados.

"Bom, vou lá pegar a cerveja".

E fui, porque era o que fazia de melhor.


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Crônica baseada no filme Gente Grande e feita para a disciplina de História e Memóra: Cinema, Literatura e Historiografia.


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